O Administrador Judicial e o Inglório Parecer de Qualificação da Culpa

O “incidente de qualificação da insolvência” previsto no artigo 186.º e seguintes do Código de Insolvência é fundamental para defender a economia em geral e dotar o processo de credibilidade punindo quem, com culpa, causou ou agravou a situação de insolvência.

Este “incidente” pretende apurar se a insolvência é fortuita ou culposa. Entende-se que existe culpa quando a situação tenha sido criada ou agravada em consequência da actuação (dolosa ou com culpa grave -presumindo-se a segunda em certos casos), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência – Arts. 185.º e ss do CIRE.

Neste procedimento, que corre por apenso ao processo, é fundamental o parecer do Administrador Judicial que, tendo conhecimento de factos que indiciam uma insolvência culposa pode, nos 15 dias seguintes à assembleia de apreciação do relatório, alegar fundamentadamente e por escrito, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar quem deve ser afetado pela qualificação.

O parecer de qualificação tem dois momentos: a) Apresentação voluntária, se este conhecer factos indiciadores de culpa e antes de o incidente ser aberto pelo juiz; b) Apresentação de Cariz obrigatório, quando juiz declara aberto incidente de qualificação nos termos do n.º 3 do art.º 188.º do CIRE.

Cabe assim ao Administrador judicial levar aos autos, para efeitos de apuramento da culpa, os factos que na sua opinião, causaram ou agravaram a insolvência, de forma a que o tribunal possa julgar e sentenciar se a insolvência foi fortuita (sem culpa) ou culposa.

Este ónus revela-se um caminho árduo, levando a que muitos administradores judiciais resistam a apresentar o parecer – mesmo sabendo que existem factos suscetíveis de imputar ao devedor a culpa pela insolvência ou seu agravamento.

Desde logo, e embora não seja aceite na generalidade dos intervenientes processuais e judiciais, o Administrador Judicial não é uma “parte” no processo e o parecer que apresenta é diferente do “requerimento” que qualquer interessado pode juntar ao processo.

Neste sentido, os actos do Administrador Judicial, tal como os actos dos magistrados, estão assim sujeitos a sanção disciplinar nos termos do art. 156.º/5 do CPC.  Se não apresentar o parecer, pode ser instado para o fazer pelo tribunal sob pena de cominação em multa e participação disciplinar à CAAJ – como tantas vezes sucede.

Ao contrário das “partes”, o prazo de 15 dias que lhe é concedido para apresentar o parecer é meramente ordenador não padecendo de caducidade se for ultrapassado pois, enquanto colaborador do tribunal, a emissão do parecer assume a natureza de um dever funcional e não um direito que possa ser objecto de caducidade (os prazos funcionais e ordenadores são sancionados enquanto que os prazos das partes e de cariz peremptório ficam sujeitos ao regime da caducidade).

Desta forma, o Administrador Judicial não tem que o fazer nos 15 dias previstos no n.º 1 do art.º 181.º do CIRE, uma vez que os interesses públicos subjacentes ao preceito do n.º 1 do art.º 188.º não se compadecem com a possibilidade de exercitar esse dever ou de limitar o mesmo num lapso temporal de 15 dias – grave seria se, após os 15 dias, se concluir pela existência de culpa e lhe for vedada a possibilidade de denunciar os factos em prol do interesse público subjacente ao processo – que tantas vezes é esquecido.

Ademais, na grande maioria das vezes, o Administrador Judicial só tem conhecimento dos factos após analisar a contabilidade e averiguar as situações que lhe são levadas ao conhecimento pelos credores ou que ressaltam dos documentos que obtém – o que ocorre muito após os 15 dias previstos no código.

Desta forma, fica claro que 15 dias são insuficientes, não chegando sequer para os gerentes responderem às solicitações do administrador ou disponibilizarem a contabilidade prestando dessa forma os devidos esclarecimentos (com as cartas registas a serem devolvidas já após os 15 dias).

Por outro lado, e mesmo tendo acesso à contabilidade nos 15 dias previstos na lei, o Administrador Judicial não consegue, nesse curto prazo, avaliar e analisar a contabilidade e, simultaneamente, examinar movimentos efectuados nos anos anteriores que podem carecer de diligencias de averiguação para atestar a sua veracidade e evitar levar ao tribunal indícios sem a devida fundamentação e sustentabilidade.

Quanto à forma do parecer, este assume uma “estrutura acusatória”, tendo o administrador que elaborar um “articulado” contendo circunstancialismo factual de modo, tempo e lugar, nexo de causalidade e prejudicialidade. Tudo conceitos de grande complexidade que, tendo os Administradores Judiciais (na sua maioria) uma formação económica/financeira, não são fáceis de traduzir para o papel – com evidentes reflexos em sede de julgamento pois terão que ser corroborados pelos meios de prova admitidos na lei processual e reproduzidos em julgamento.

A própria tramitação do incidente não facilita pois, se em regra a prova para corroborar o parecer já não é fácil de recuperar, mais difícil se torna quando as testemunhas são a apresentar… ou seja, estas testemunhas não são notificadas pelo tribunal mas pelo Administrador Judicial, o que leva a que o julgamento acabe com muitos factos mas sem prova que sustente uma decisão e culpa.

Adiante, sendo aberto o incidente e marcado julgamento, o Administrador Judicial encontra-se sozinho frente aos advogados dos afetados pela qualificação, que tudo vão fazer para descredibilizar o parecer e o próprio…Nesta fase, mais do que nunca, fica entregue à sua sorte estando os credores, principais interessados com o incidente, mais virados para a fase da reclamação de créditos, anulação de negócios e rateio.

culpa

Embora lhe caiba elaborar o parecer, fica totalmente ausente e impossibilitado de o defender em julgamento – momento de produção de prova. Pois, em juízo, apenas presta declarações quando  inquirido pelo Juiz, Ministério Público e Advogados dos requeridos…não tendo, na maioria das vezes um advogado constituído que possa defender o seu parecer ao longo do julgamento por exemplo, inquirindo as testemunhas e confrontado as mesmas com a prova (ficando nas mãos do MP que durante a audiência pode, querendo, requerer diligências adicionais  permitidas na lei)

Resultando que, recorrentemente e embora muito alegue no parecer de qualificação da culpa, não o consegue provar pois, para correr bem, teria que ter conhecimento de processo civil, sobretudo no âmbito das diligências probatórios e sua utilização processual (e muito menos contar que o MP ou o juiz, dentro dos poderes que lhe assistem, o façam por si).

Esta realidade tem levado a que estes profissionais comecem a perder a fé no incidente de qualificação de insolvência pois, por muito que emitam pareceres e roguem justiça, as condenações são poucas – porque se alegou e não se provou ou porque não se aprofundaram os factos e os meios de prova em sede de audiência de julgamento…Nada podendo fazer o juiz que precisa de factos e prova para aplicar o direito.

Mas mudamos quando tomamos consciência que algo está errado…e foram dados três passos importantes para maior responsabilização pelas situações de insolvência.

A entrada de novos Administradores Judiciais trouxe uma nova mentalidade, pugnando por uma maior responsabilização nos processos em que assumem funções e tentando acabar com vícios e formas de actuar predominantes que em nada abonavam o processo judicial sobretudo em relação à fase da liquidação dos activos. Nunca os tribunais tiveram tantos incidentes para julgar como agora… Antes da entrada destes profissionais em funções, o incidente de qualificação era algo sem qualquer aplicação prática.

A introdução da nomeação aleatória dos Administradores Judiciais – que devia ser obrigatória em todos os processos incluindo o processo de revitalização e figuras análogas – já começa a ser prática de alguns tribunais. Pugnar por uma maior transparência e responsabilização na condução dos processos implica acabar com as nomeações por indicação – A coberto de um procedimento judicial provisório vendem-se omeletes sem se ter ovos.

A opção preferencial de venda dos activos das massas insolventes através de leilão electrónico, em detrimento da modalidade de carta fechada ou negociação particular, veio trazer mais garantias, transparência, eficácia e valores de venda mais justos e adequados – Acabando com a mediação encapotada na venda de activos que tantas vezes padecia o processo de insolvência.

Três medidas que, apesar de terem reflexos indirectos no apuramento da culpa, levam os intervenientes a pensar duas vezes antes de recorrer ao processo de insolvência e a ponderar se querem mesmo fazer omeletes sem ovos.

Não existe nada melhor para dar transparência ao processo de insolvência que a incerteza de quem o vai conduzir…

Luís M. Martins – Advogadohttps://luismmartins.pt