A “Herança” Entra na Exoneração do Passivo Restante?

A “herança” íntegra o processo de insolvência? Estamos perante um “rendimento disponível”. O “direito à herança” pode ser penhorado?

Uma das dúvidas que mais nos colocam consiste em saber se, uma vez assumida a qualidade de herdeiro na pendência do processo de insolvência e em fase de fidúcia/exoneração do passivo restante, tem que se informar o processo .

Ou seja, o devedor/insolvente que assume a qualidade de herdeiro durante os cinco anos do período de cessão tem que levar essa realidade ao processo sob pena de ser sancionado com a cessão antecipada ou recusa final da exoneração? Estamos perante um “rendimento disponível”?

Como em muitas questões relacionadas no âmbito de aplicação do CIRE, existem entendimentos antagónicos que variam consoante a interpretação que os tribunais fazem da lei.

Se a situação ocorrer antes de iniciar o período de cessão e o devedor não informa da existência da herança/quinhão hereditário, não existem dúvidas que viola, com culpa grave, os deveres de informação e colaboração anunciados na al g) do nº 1 do art.º 238º do CIRE. Atente-se que o artigo 24.º/1, alínea e) do CIRE impõe que se junte, com a petição inicial, uma relação de  “… todos os demais bens e direitos de que seja titular, com indicação da sua natureza, lugar em que se encontrem, dados de identificação registral, se for o caso, valor de aquisição e estimativa do seu valor actual…”– cabendo ao Administrador Judicial apreender e vender os mesmos no âmbito do incidente da liquidação do activo.

Mas questiona-se: E após o encerramento do processo de insolvência, já durante o período de exoneração do passivo?

Dispõe o código de insolvencia que, após o encerramento “…Cessam todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência, recuperando designadamente o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios. – ” 233.º n.º 1 al. a) do CIRE.

Por sua vez, o art.º  239.º n.º 4 al. a) do CIRE, estabelece que durante o período da cessão, o devedor fica obrigado a “…Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado…” Se o fizer, a sua conduta pode ser entendida como omissiva e intencional de ocultar património aos credores.

Aqui chegados, questionamos: A qualidade de herdeiro pode ser considerado um “rendimento” ou “património” para efeitos dos referidos normativos legais? A questão só se coloca enquanto for “herdeiro” e estivermos perante um “direito à herança” uma vez que, se já tiver partilhado e recebido a sua parte na herança, não existem dúvidas que se impõe entregar o “património” recebido à fidúcia.

Mas enquanto a herança não estiver partilhada estamos perante uma herança indivisa constituída por um património autónomo. Ou seja, nenhum dos herdeiros tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto – nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles.  Tem apenas um “direito” que incide sobre a totalidade daqueles bens e nunca sobre cada um dos bens individualizados que a compõem.

Também não se trata uma compropriedade (comunhão por quotas ou partes definidas) nem o herdeiro pode exigir que o seu direito seja preenchido por determinados bens ou por uma quota em cada um dos deles pois não é “dono” de uma parte concreta dos bens da herança. Apenas tem direito a uma parte da herança que é bem diferente.

Só com a efetivação da partilha e divisão do acervo hereditário é que cada um dos herdeiros fica a conhecer os concretos bens que lhe foram atribuídos –os quais passam a ser “património” individualizado pertencente ao herdeiro.

Assim, e até à efectivação da partilha, pode-se defender que o direito à herança que cabe ao insolvente não pode ser considerado um “rendimento” ou “património” nos termos previstos no art.º  239.º n.º 3  e 4 al. a) do CIRE – não sendo englobado no rendimento a ceder ao fiduciário.

Todavia, face à leitura sistemática do código, fins do processo e, em especial, aos objetivos do incidente de exoneração do passivo restante que culmina com o “perdão das dívidas”, não descortino como podemos concluir que o “direito à herança” não deve ser considerado “rendimento” ou “património” para efeitos dos referidos artigos.

A cessão do rendimento disponível abrange todos os “rendimentos” que advenham a qualquer título ao devedor- entendendo-se como “rendimento” e “património” quaisquer acréscimos patrimoniais existentes na esfera patrimonial do insolvente.

 Logo, assumindo a qualidade de herdeiro durante a fidúcia, o insolvente deve entregar o seus “direito a herdar” ao fiduciário pois estamos perante um direito de “cariz patrimonial” que interessa aos credores. Solução diferente, levaria a uma posição abusiva que privilegiaria injustificadamente o devedor – que optaria por não partilhar o bem….aguardando pelo fim do período de cessão.

Na prática suscitam-se questões complexas nomeadamente, porque pode não existir  a figura do administrador judicial a representar o insolvente – tendo cessado funções com o encerramento do processo, nada pode obrigar o devedor a fazer a habilitação de herdeiros, partilhar, propor acção judicial de partilhas etc., pois o  fiduciário não tem poderes para representar o insolvente.

Igualmente, é admitida a penhora do direito a uma herança por partilhar –  a lei permite a penhora do direito que o devedor tenha sobre os bens indeterminados (a contrário, a lei proíbe a penhora de uma parte especificada do bem indiviso que é a herança –  artigos 743º, nº. 1 e 781º, nºs. 1 e 2 do Cód. de Processo Civil).

Luís M. Martins – Advogado

Nota: Neste artigo aborda-se um tema geral sobre o direito da insolvência, com o distanciamento do caso concreto, prestando-se um serviço social e de divulgação de informação jurídica (cfr. artigo 20.º, n.º 2, da Constituição).